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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobre a indecisão, esse pequeno mal que talvez aflija uma geração inteira

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

01/04/2023 06h00

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Não sei bem como começar este texto, e hoje isso é o que tenho de mais honesto e justo a dizer. Quero escrever sobre a indecisão, sobre esse tipo peculiar de paralisia e aflição que a tantos chega a abater, sobre esse estado de inércia a meio caminho entre o agir e o desfalecer. Não há escritor que não tenha se deixado dominar alguma vez pelo silêncio da indecisão. Digo escritor e então hesito: talvez esteja aqui diante de algo maior, ou não? Talvez a indecisão seja uma marca do nosso tempo, um vício do pensamento contemporâneo. Talvez governe as nossas ações mais do que confessamos, e mais do que podemos compreender.

Me aproximo dessa ideia numa página de Natalia Ginzburg, mulher de raciocínio certeiro. Fundando uma personagem mais velha, ela se põe a observar a nova geração que se apresenta ao mundo e então afirma decididamente: "o traço que define os jovens de hoje é a indecisão". Sua atenção se volta sobretudo à confusão própria das novas famílias, dos pais que não transmitem firmeza e contagiam os filhos com sua vacilação infinita. "A indecisão dos pais acaba envolvendo as crianças: choram, pois a indecisão os exaspera; misturam às incertezas dos pais suas próprias incertezas." Leio esse texto escrito há algumas décadas e demoro a decidir com quem me identifico: se fui uma vez o filho exasperado, ou se sou hoje o pai dubitativo.

Seja como for, sei que Ginzburg tem razão, que a indecisão é capaz de produzir uma aflição sensível que se avizinha da angústia e do desespero. Diante da maior banalidade, vejo como se produz em minha filha um sofrimento pela hesitação que poderia ser só minha, mas se torna inapelavelmente sua. Ela me pergunta se pode comer um pirulito e, distraído, digo que sim. Depois desperto, lembro que ela foi a uma festa infantil mais cedo, que ali deve ter consumido sua cota razoável de doces, e me corrijo. Na passagem do sim ao não ela se altera, chora como não chorava fazia tempo. Sim ou não teriam sido respostas calmas e plausíveis. Mas a indefinição criou um jogo complexo de expectativa e frustração que a afastou de todo equilíbrio.

Me pergunto em quantas situações não estarei igual à minha filha, embora sem me entregar ao choro desabrido. Me pergunto se não serei parte de uma geração vacilante, acometida pelo mal da indecisão, incapaz de assimilar a complexidade que ela inaugura. A cada hesitação o mundo se bifurca: serão dois os caminhos possíveis, e logo quatro, e logo oito, em projeção geométrica. A vida se multiplica em possibilidades nunca de todo descartadas, e o passado se mantém presente na forma de um remorso especulativo. O futuro também é visto com desconfiança: não nos cansamos nunca de projetar o que poderia ter sido a partir de outras escolhas, se tivéssemos insistido mais, se tivéssemos desistido a tempo, se tivéssemos entendido.

Abandono a vaguidão para que me entendam. Durante vários meses me digladiei comigo para decidir se escreveria ou não um livro. Consegui produzir o primeiro capítulo, e então caí numa sucessão aflitiva de continuidades frustradas, de reinícios e abandonos como nunca havia me acontecido. Decidi que não podia seguir naquela escrita, que algo de incerto em mim a tornava impossível, e que me cabia aceitar esse limite. Acabo de terminar o primeiro capítulo de um novo romance, em tudo diferente daquele, em tema, extensão, estilo. Sou agora tomado pelo receio de não conseguir ir adiante, de me ver de novo impedido. Em momentos de distração, me pego a pensar se devo retomar o outro que ficou abandonado, se aquele é afinal o livro a ser escrito, contra toda expectativa, contra meu próprio juízo.

Hoje eu poderia ter escrito sobre a volta de um crápula ao país, sobre a tardia e necessária anistia a Ivan Valente por ter sido perseguido pela ditadura, sobre a estranha onda de reescrita sensível de autores clássicos, ou sobre o sublime que decidiu morar na voz de Mônica Salmaso. Cada um desses assuntos teria criado um sábado totalmente diferente para mim, um sábado de outro teor e outra ênfase, outras declarações de afronta ou apreço, outras conversas, mais graves ou mais líricas. Não me decidi a escrever sobre nenhum deles, embora possa vir a fazê-lo, se desaparecerem em mim os indizíveis pudores que me contiveram.

Acabei vindo parar aqui nestas palavras, acabei por me debruçar sobre a indecisão como sina e como fim. Agora não sei o que concluir de tudo isso. Não sei bem como terminar este texto, e hoje isso é o que tenho de mais honesto e justo a dizer.